sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A UMA PASTORA TÃO FORMOSA COMO INGRATA

Alexandre de Gusmão

Pastora a mais formosa e desumana,
Que fazes de matar-me alarde e gosto,
Como é possível que a um tão lindo rosto
Unisse o Céu a uma alma tão tirana?

Cruel! Que te fiz eu, que me aborreces?
Tens duro coração, mais que um rochedo!
Sou tigre, ou sou leão, que meta medo,
Que apenas tu me vês desapareces?

Por ti tão esquecido ando de tudo,
Que o gado no redil deixei faminto;
O sol me fere a prumo, e não o sinto,
A ovelha está a chamar-me e não lh’acudo.

Lá vai o tempo já que em baile e canto
Eu era no lugar o mais famoso;
Agora, sempre aflito e pesaroso,
Só o que sei é desfazer-me em pranto.

Há pouco que encontrei alguns Pastores,
Que iam comigo ao monte após o gado,
Que não me conheceram de mudado,
Que tal me tem parado os teus rigores!

Até o rebanho meu, que um dia viste
Tão nédio antes que eu enlouquecesse,
Não come já, nem medra, e se emagrece,
Por dó que tem de ver-me andar tão triste;

Ele me guia a mim, não eu a ele,
Que vou nos meus pesares enlevado;
Bem pode o lobo vir, levar-me o gado
À minha vista, sem que eu dê fé dele.

Não sei que nuvem trago neste peito,
Que tudo quanto vejo me entristece;
A flor do campo parda me parece;
Até ao mesmo sol acho imperfeito.

Do alegre prado fujo para o escuro
Da serra me retiro entre os rochedos;
Ali pergunto às feras e aos penedos
Se alguém há mais que tu cruel e duro.

Ali ouço soar rompendo o mato
Do ribeirinho as saudosas águas,
E em competência vão as minhas mágoas
Dos olhos despedindo outro regato.

Este mal, que hoje sofro, eu o mereço,
Que ingrato desprezei quem me queria;
Agora se me vê, faz zombaria,
Que bem vingada está no que padeço.

Então não conhecia o que amor era
Também me ria do tormento alheio;
Oh! quão cedo (inda mal) o tempo veio
Que o conheço já mais do que quisera.

Não me desprezes, não, gentil Pastora,
Que igual castigo Amor talvez te guarda;
Não sejas à piedade avessa e tarda,
Tem dó de maltratar a quem te adora.

ALEXANDRE DE GUSMÃO (Santos, 1695-1753) serviu nove anos como secretário particular de D. João V; e deixou cartas que não são obras de escrupulosa linguagem, mas nas quais dá provas de sagacidade, espírito observador, e admirável tino prático. Retirado dos públicos negócios depois da morte de D. João V, perdeu dois filhos no incêndio que lhe devorou a casa, e apenas sobreviveu um ano a tão infausto sucesso.

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