domingo, 1 de novembro de 2015

O MEDO NOSSO DE CADA DIA



O MEDO NOSSO DE CADA DIA
DOUGLAS MENEZES
A tortura começa logo cedo. Saindo de casa já o medo estampado. Nos coletivos a expectativa de uma arma na cabeça a qualquer momento. Rotina de terror dos brasileiros e brasileiras, A vida cada vez valendo menos. A dúvida sempre se vai voltar à noite. Um país doente que expõe seu povo trabalhador ao constrangimento e ao terror da violência gratuita, além de um desemprego que disarticula o todo social e infelicita milhares de famílias e o aumento da violência tem muito a ver com isso. Um estado falido. Uma culpa geral de quem comanda, seja no município, na esfera estadual ou federal. Enquanto discutem suas querelas distantes da massa que paga impostos caros, a gente está aqui, aguentando até o que diabo enjeita. Os ajustes sempre feitos à revelia e penalizando o lado social: Educação, Saúde, Infraestrutura e Segurança, estas pagando um preço altíssimo pela incompetência e corrupção.
 
Sopro de esperança quase nenhum. No horizonte o vazio de lideranças que tenham verdadeiramente espírito público. Ilusão as pessoas acharem que a crise é só econômica. Não é, fundamentalmente ela é política e só será resolvida com desprendimento e sentimento nacionalista. Tudo neste país parece travado, um pedacinho de esperança ainda aparece ao ler os jornais pela manhã, a ingênua busca, com os olhos nas letras, de encontrar notícias que nos façam sair do beco, que nos conduzam ao reencontro de uma existência mais digna e menos penosa. Mas as letras e imagens criam a desilusão de que nada vai mudar e todo dia, denúncias e mais denúncias de desvio do dinheiro público, numa cantilena monótona e já desinteressante. O povo olha descrente e anestesiado por tudo o que escuta e vê.
 
Quisera, neste domingo ensolarado do primeiro dia do mês, fazer uma crônica dizendo de moças bonitas, de rapazes sarados e crianças brincando ao redor do mar. Ou mesmo descrever o amor como sentimento maior. Mas assustado, caminho na minha cidade quase deserta , olhando para os lados, como se essa paranóia, esse terror de ser agredido no meu direito de ir e vir, levassem, de vez, a esperança de uma nação mais humana. Um país cheio de jardins, sem flores, é o que sinto, é o que vejo.
 
Douglas Menezes é membro da Academia Cabense de Letras
 
Cabo de Santo Agostinho, primeiro de novembro de 2015.
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sexta-feira, 25 de setembro de 2015

POEMA – MÁQUINA DE ESCREVER


 
Mãe, se eu morrer de um repentino mal,
vende meus bens a bem dos meus credores:
a fantasia de festivas cores
que usei no derradeiro Carnaval.
Vende esse rádio que ganhei de prêmio
por um concurso num jornal do povo,
e aquele terno novo, ou quase novo,
com poucas manchas de café boêmio
.
Vende também meus óculos antigos
que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes
para enxergar os corações amigos.
Vende , além das gravatas, do chapéu,
meus sapatos rangentes. Sem ruído
é mais provável que eu alcance o Céu
e logre penetrar despercebido.

Vende meu dente de ouro. O Paraíso
requer apenas a expressão do olhar.
Já não precisarei do meu sorriso
para um outro sorriso me enganar.
Vende meus olhos a um brechó qualquer
que os guarde numa loja poeirenta,
reluzindo na sombra pardacenta,
refletindo um semblante de mulher.

Vende tudo, ao findar a minha sorte,
libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte
sem realmente desejar que eu viva.

Pode vender meu próprio leito e roupa
para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa
esta caduca máquina em que escrevo.
Mas poupa a minha amiga de horas mortas,
de teclas bambas, tique-taque incerto.
De ano em ano, manda-a ao conserto
e unta de azeite as suas peças tortas.

Vende todas as grandes pequenezas
que eram meu humílimo tesouro,
mas não! ainda que ofereçam ouro,
não venda o meu filtro de tristezas!

Quanta vez esta máquina afugenta
meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta,
o meu doce instrumento musical...
Bate rangendo, numa espécie de asma,
mas cada vez que bate é um grão de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma.

Pois será para ela uma tortura
sentir nas bambas teclas solitárias
um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura.
Deixa-a morrer também quando eu morrer;
deixa-a calar numa quietude extrema,
à espera do meu último poema
que as palavras não dão para fazer.

Conserva-a, minha mãe, no velho lar,
conservando os meus íntimos instantes,
e, nas noites de lua, não te espantes
quando as teclas baterem devagar
.
GIUSEPPE GHIARONI