quarta-feira, 17 de outubro de 2012

ALGUMA COISA ACONTECE...

DOUGLAS MENEZES

   Alguma coisa acontece nos corações e mentes quando um artista reconstrói o desconstruído. Faz do feio aparente, a beleza maior. Tira do lodo ou do feioso cinza, cores irradiando a vida, enxergando um sol amanhecendo naqueles dias em que a poesia parece inundar a existência. Alguma coisa acontece principalmente nos corações, quando o que poderia ser despoetizado pela evidência de um ambiente insalubre, não só feio, como até mesmo grotesco, poluído, desumano, incolor, artificial, violento, medroso. Alguma coisa acontece, principalmente nos corações, quando o que poderia ser despoetizado se torna a mais genuína expressão de conteúdo poético, pura busca de humanizar o desumano.
   “Alguma coisa acontece no meu coração/ Que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João”. Caetano Veloso consegue fazer do concreto paulista, um jardim inimaginável de poesia para São Paulo. Torna humana cada fealdade expressa. Põe virtude nos defeitos cantados e comuns a todos que conhecem aquela selva. Uma verdadeira compaixão, como se tivesse pena das coisas ruins que habitam Sampa, e encontrasse nelas o sumo da vida, o adubo necessário para se construir uma humanidade. Como se a torre de babel finalmente vislumbrasse uma linguagem única, irmanando a todos, de todas as raças e idiomas, numa só nação.
   Caetano consegue musicalizar São Paulo no próprio título do poema. O samba que representa a redenção. O desfilar na melodia perfeita para o objetivo proposto. Tornou a música, simples por sinal, numa narrativa que é um roteiro para quem chega a São Paulo e sente o choque de realidade, muitas vezes tão cruel que leva o indivíduo desavisado a sucumbir e se transformar em mais um ser marginalizado na cidade grande. Um roteiro, também, para aqueles que resistem, tiram o manto do preconceito, e, a duras penas, se adaptam, começam a viver a  urbe gigantesca nos aspectos do bem, sem esconder a realidade dura, mas enfrentada pelos grandes vencedores. Não esquecendo as contradições, muitas, as dificuldades do provinciano num mundo universal: “E foste um difícil começo afasto o que não conheço/ e quem vem de outro sonho feliz de cidade /  aprende depressa a chamar-te de realidade/ porque és   o avesso do avesso do avesso do avesso”.
     Em Sampa, a sensibilidade social, a disparidade de renda, a opressão aos mais pobres, a importância de dinheiro, necessário e também destruidor: ” Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas / Da força da grana que ergue e destrói coisas belas”. E o arremate crítico, politicamente correto com preocupação ambiental: “ Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas”. E a referência do concreto paulista à concretude da poesia: “ E vejo surgir teus poetas de Campos e espaços”.
   Mas São Paulo é, ao mesmo tempo, a meca dos que desejam progredir, dos que não tiveram chance em suas terras. Simboliza a liberdade, o novo quilombo, a chance na vida. E Caê não deixou de observar isto.
   O roteiro termina de modo lânguido, carinhoso, num reconhecimento de que Sampa é humana e habitável para quem nela consegue ir além da sobrevivência . Poesia de um poeta maior: “E os novos baianos passeiam na tua garoa / E os novos baianos te podem curtir numa boa”.

DOUGLAS MENEZES É PROFESSOR, EX-SECRETÁRIO DE CULTURA DO CABO DE SANTO AGOSTINHO E MEMBRO DA ACADEMIA CABENSE DE LETRAS.
EMAIL: douglasmenezesnet@gmail.com

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