quarta-feira, 5 de outubro de 2011

GRACILIANO RAMOS, A VISÃO DE MUNDO DE UM CIDADÃO-ESCRITOR

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Por Douglas Menezes
A imagem de pedra em cascalhos ultrapassa a simplória fronteira dos olhos sertanejos, acostumados apenas àquela cor que nem é branco nem cinza: uma cor própria do sertão
Arco-íris nenhum jamais essa cor fará parte. A alma de quem lá nasceu não é senão uma continuidade do clima e da paisagem quase nunca esverdeada. E por mais que se queira expressar tão somente sentimento, a força bruta do natural se impõe com todo vigor. O homem é taciturno, parado, de olhar duro, porque tudo em sua volta é rígido e parado: jeito impiedoso que o sertão tem na convivência com os nascidos por lá.
E reside aí, sem mar e como muito sol, um dos paradoxos daquelas paragens: a miséria, a dor estigmatizante, a falta de qualquer perspectiva em vez de tornarem o ser em alguma coisa amolecida, tornam-no, isto sim, num hercúleo homem subdesenvolvido. Onde ele, assim nesse estado; onde ele, com um fardo de toneladas sobre os ombros, só osso; onde ele, esquecido pelos poderes divinos e humanos, consegue represar tanta força para encarar a existência? Enigma esse, pois o que leva a enfraquecer, nele fortalece.  




O estranho relacionamento homem-ambiente, em que a inclemência, antes de ser um objeto de distância, aproxima, como uma relação amorosa mórbida, nos atrai e nos faz questionar sobre a força mística que cerca o sertanejo. A ignorância pode levá-lo ao divino; mas a semelhança áspera do seu torrão leva-o, também, à inevitável comparação com a terra onde nasceu o Filho do Homem. Escolhido será o que sofre aqui, pois, com certeza, um reino de pão e mel o aguardará no duvidoso paraíso, que o cético hesita em pintar.
Não faz mal. Tanto faz a Judeia como Salgueiro, os sulcos em cada rosto extrapolam a mera convenção regional: o homem é um e todos em qualquer lugar. A soma de províncias faz a universalidade da alma humana. As águas do Reno são amareladas e doces, como as do Una em tempo de bom inverno e verão ameno. Pois não é verdade que a fome daqui, que mata crianças tão tenras ainda, é a mesma que nas estradas arrasta os molambos africanos de olhos e vértebras à mostra? A dor é uma linguagem universal. Equivocada a ideia de fechá-la num espaço de um lugar. Amplia-se a fronteira de nossa província-mãe. Aniquilam-se as porteiras que não nos deixavam ver os currais vizinhos. O mundo é um grande cercado. Mudam-se as roupas; mas todo vaqueiro tem o chapéu, o olhar trancado e o cheiro de vaca, que são comuns a todos. O resto é não ter noção de humanidade.




O carcará sobrevoa. O borrego novinho nem desconfia. É sagaz o bastante para ganhar fama no sertão. Tempo não houve para o gadinho crescer e, claro, morrer de fome na terra estorricada. Já o sangue espirra por todos os lados. Apenas um estremecimento, suculenta a carne fresca. Devorada em alguns minutos. A lei do mais forte prevalecendo. Cabramacho no sertão, quem vive nele tem de ser.


O menino viu tudo, não há como esconder o rosto, cegar a vista que o sol acostuma à luz intensa. O menino viu, sim. Forjou o caráter do menino a vida endurecida. A rudeza agreste dos pais. Cedo, tão cedo formou um calo emocional. E apesar de tudo, tornou-se uma criatura que foi um misto de imagem seca, aparente aspereza, com um profundo sentimento de humanidade. Assim se deu o milagre. Um predestinado. A natureza não deixa o meio interferir na vida dos eleitos. Aquele clima da infância só de leve influenciando sua mente. Observador, tirou lições do que assistiu, para contribuir com um possível mundo melhor. É bem verdade, a seu modo: lâmina fria, que não corta, porém. Comedido, parcimônia necessária, falar só o suficiente: não paga a pena um floreio estéril. Pedra fértil, Graciliano; rocha bondosa. Líder não era. Popular também não, como um Jorge Amado. Fez uma literatura a serviço do povo, contudo.
AFIRMAÇÃO DE PERSONALIDADE  
 
Foi, no entanto, em suas Memórias do Cárcere, antes chamadas Cadeia, que Graciliano Ramos demonstra a afirmação de uma personalidade que causa ainda hoje admiração a quem o conheceu e do público leitor. No momento tenso que viveu, quando a maioria se desespera e muitos dão cabo da própria vida, ele expressou uma altivez, uma serenidade como poucos. Confinado em ambientes sórdidos, tratado absurdamente como um pária social, convivendo com toda espécie de indignidade humana, em nenhum momento pareceu abalado. Dá-nos a impressão de estar num mosteiro, ou numa casa de repouso, tal a tranquilidade deixada transparecer. Parecia um observador distante, um frio repórter isento de qualquer ligação com o que presenciava. Vivendo intensamente aquela tragédia moral, centro mesmo das atenções, foi um jornalista e, sobretudo, um filósofo daquela situação. Compadeceu-se com o drama dos companheiros, nunca com o seu. Caráter temperado a ferro, possuía uma estranha nobreza. Um autodidata do verdadeiro humanismo. Não precisou de universidade para aprender o relacionamento civilizado. Provou isso nas fases mais difíceis da vida. Não cultivou mágoas, merecidas se as tivesse. Nunca uma palavra agressiva para os inimigos, para os ditadores intolerantes, para os carrascos incultos, até mesmo pela função que exercem. No cárcere, o cidadão reafirmou o excelente caráter; no texto, o grande escritor de nossas letras. O insuperável clássico que o tempo não apagará jamais.



Ser comprometido não é fazer comício por meio das letras. Pelo contrário, essa atitude pode, de fato, encobrir um mau escritor e muitas vezes evidenciar uma atitude falsificada diante da vida.
 * Douglas Menezes é professor da rede oficial e particular de Pernambuco. Especialista em literatura brasileira e membro da Academia Cabense de Letras.

Um comentário:

  1. Parabéns confrade João pela sua sensibilidade em divulgar o excelente texto do escritor Douglas.

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